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Carta de Gaspare Schopp, testemunha da execução de Giordano Bruno, a Corrado Rittershausen.

 

Esse documento encontra-se traduzido nas obras de Berti (1889:461-467), Spampanato (1921:798-805; 1933:198-206).

 

 

 

 

 

 

 

Carta a Corrado Rittershausen

 

Tenho certeza de que aquelas cartas que havia escrito em resposta às tuas recentes críticas epistolares lhe tenham sido entregues e, assim, espero ter-me grandemente desculpado contigo pelo fato de ter tornado minha resposta de domínio público. Na realidade, ao escrever-te agora, fui motivado ainda hoje, dia no qual Giordano Bruno, devido a sua heresia, tornou-se objeto de trágica observação e investigado ele próprio, e outros, foi publicamente queimado no Campo dei Fiori, diante ao teatro de Pompeo.

 

Mantenho, de fato, que isso também reentre no tema tratado na parte final de minha carta publicada, na qual discuto as penas a serem inflingidas aos hereges. Se tu estivesses em Roma nos dias de hoje, ouviríeis de quase todos os italianos que foi queimado um luterano e, assim, reforçarias a tua opinião acerca da crueldade de nós católicos. Mas deves saber de uma vez por todas, caro Rittershausen, que os italianos não estabeleceram um limite claro entre as diversas seitas heréticas, nem as distinguiram, mas consideram luteranos todos aqueles que são heréticos. Rogo a Deus que lhe conserve nessa convicção superficial para que não saibamos nunca como uma heresia se diferencia da outra. Temo, com certeza, que, de outra forma, essa capacidade de distinguir esta ou aquela seria muito custosa. Para que tu apreendas por mim a sacrossanta verdade, te relato os fatos, que se desenrolaram da forma como te direi e, como temente: certamente nenhum luterano ou calvinista corre, de forma alguma, risco de vida em Roma e, menos ainda, é punido com a morte, a menos que seja reincidente ou tenha feito um escândalo público. Esse é o entendimento de nosso santíssimo Senhor: que todos os luteranos têm garantido o livre ingresso em Roma e que provem todo tipo de benevolência e humanidade por parte dos cardeais e dos prelados da Cúria. Quisesse o Céu que tu estivesses aqui, ó Rittershausen! Tenho certeza de que calarias tamanhas falsidades difusas.

 

No mês passado esteve em Roma um nobre Saxão, que vivera o ano precedente inteiro em uma casa de Beza. Este se fez conhecido de muitos católicos, do mesmo cardeal Baronio, confessor do pontífice, o qual o acolheu com grande respeito, e com ele não tratou, de forma alguma, de argumentos de religião, exceto o fato de, ocasionalmente, incitá-lo a buscar a verdade. Houve garantia sobre a lealdade à sua absoluta incolumidade, exceto se tivesse feito um escândalo público. E aquele estaria ainda muito tempo entre nós se, aterrorizado pelas vozes difusas acerca de alguns ingleses levados prisioneiros ao palácio da Inquisição, não tivesse temido pela sua vida. E aqueles ingleses não eram luteranos, como comumente são chamados pelos italianos, mas puritanos e suspeitos de terem atacado de forma sacrílega (coisa que, aliás, os ingleses costumam fazer) o venerável Sacramento. Talvez, de forma semelhante, eu mesmo seria levado a crer pela voz popular que esse Bruno foi queimado por suspeita de luteranismo, se não tivesse participado de uma reunião da Santa Inquisição enquanto era pronunciada a condenação contra ele, e tivesse, assim, sabido a realidade dele professada. Aquele Bruno era nolano, do reino de Nápoles, da ordem Dominicana; aos dezoito anos duvidava do dogma da transubstanciação (que, certamente, repugna à razão, como te ensina o teu Crisóstomo), além de negá-la veementemente, e, logo em seguida, havia começado a pôr em dúvida a virgindade da Beata Maria (a qual Crisóstomo considera sempre mais pura de que todos os querubins e serafins); refugiou-se em Genebra, e aí ficou por um biênio, e depois, foi expulso de lá porque não andava perfeitamente de acordo com o Calvinismo, do qual, todavia, nenhuma confissão tenha conduzido [à acusação] de ateísmo, transferiu-se para Lyon, de lá a Tolouse e depois a Paris; ali permaneceu como professor extraordinário, uma vez que via os ordinários serem obrigados a presenciar a santa missa.

 

Depois, partiu para Londres, e publicou naquela cidade um libelo sobre a Bestia trionfante, isto é, sobre o papa, que os vossos, a título de honra quase chamam de asno. Depois, viajou até Wittemberg, e aí, se não me engano, ensinou publicamente por um biênio. Transferiu-se posteriormente a Praga, onde publicou um livro, De immenso et infinito e também De innumerabilis (se recordo com suficiente exatidão os títulos; de fato, esses livros os tive em minhas próprias mãos em Praga), e ainda De umbris et ideais [sic], nos quais ensina coisas horrendas e, sobretudo, absurdas, como, por exemplo, que existem infinitos mundos, que a alma passa de corpo a corpo; além do mais, de que a alma pode transmigrar em um dos outros mundos, que uma alma pode habitar dois corpos, que a magia é coisa boa e lícita, que o Espírito Santo não é nada mais, nada menos que a alma do mundo, e que este princípio foi professado por Moisés, quando escreveu que aquele Espírito brotou as águas; que o mundo existe desde a eternidade; que Moisés fêz seus milagres através da magia, na qual havia progredido além de todos os outros egípcios; que ele inventou as leis e que as Sagradas Escrituras são fantasias; que também os diabos se salvarão e que somente os hebreus tinham tido sua origem de Adão e Eva, os outros, Deus havia criado um dia antes, que Cristo não é Deus, mas um grande mago que enganou a todos, e que por esta razão foi suspenso (em língua italiana, enforcado), e não crucificado; que os profetas e os apóstolos foram homens comuns, magos e que muitos deles também foram enforcados. Enfim, seria impossível passar em resumo a enormidade de coisas que ele sustenta em seus livros e de viva voz. Para dizer brevemente, qualquer coisa que jamais tenha sido asseverada pelos filósofos dos pagãos ou pelos nossos antigos e mais recentes hereges, ele a sustenta. De Praga ele seguiu para Brunswich e para Helmstädt e, dizem, permaneceu ensinando ali por um certo tempo.

 

Depois, transferiu-se à Frankfurt para publicar um livro e, finalmente, caiu nas mãos da Inquisição de Veneza, onde, após permanecer por longo tempo, foi transferido a Roma e, por diversas vezes, submetido a interrogatórios do Santo Ofício, o qual chamam de Inquisição, e contestado pelos sumos teólogos, obteve quarenta dias para decidir; prometendo uma retratação, defendeu novamente suas fantasias e, depois, pediu mais quarenta dias, mas, ao final, não fez outra coisa a não ser desiludir as esperanças do pontífice e da Inquisição.

 

Quase dois anos depois, quando já estava nas mãos da Inquisição, no dia 9 de fevereiro passado, no Palácio do Supremo Inquisidor, na presença dos Ilustríssimos Cardeais do Santo Ofício da Inquisição (os quais pela idade e pela sapiência teológica e jurídica superam todos os outros), dos teólogos conselheiros e do governador da cidade, autoridade secular, aquele famigerado Bruno foi introduzido na sala da Inquisição e ali de joelhos escutou a sentença contra ele. Essa, na verdade, foi articulada da seguinte forma: foi exposta a vida daquele, os estudos, os convencimentos e todo o trabalho que a Inquisição havia feito para tentar convertê-lo e em adverti-lo fraternalmente, e quanta obstinação e impiedade aquele havia sustentado: depois, foi reduzido ao estado laico, ou como se diz, o excomungaram de tudo e o consignaram à autoridade secular para a punição, pedindo que essa fosse a mais clemente possível e que fosse realizada sem derramamento de sangue.

 

Ficando isento de todas as formalidades de rito, aquele não respondeu, senão quando ameaçado. “Certamente pronunciais a sentença contra mim com maior temor que o que provo eu ao sofrêla”. Assim, foi transferido pela guarda do governador para o cárcere e ali foi custodiado por oito dias, para experimentar até o último, se quisesse se corrigir de seus erros, mas em vão. Hoje, em conseqüência, foi conduzido ao rogo, ou seja, para um amontoado de lenha; próximo à morte, foi-lhe mostrada uma imagem do Salvador crucificado, a qual foi rejeitada com vulto desdenhoso e, portanto, morreu miseravelmente queimado, e assim poderá anunciar, creio, em todos aqueles infinitos mundos que ele havia imaginado, como são tratados pelos romanos os blasfemos e os ímpios.

Este é o modo, caro Rittershausen, no qual, contra certos homens, ou, ao contrário, contra monstros dessa espécie, se procede freqüentemente. Agora seria um prazer saber se aprovas tal procedimento; ou, melhor, se preferirias que fosse lícito a qualquer um acreditar e professar qualquer coisa que se queira. Na verdade, creio que tu não aprovarias. Porém, devo acrescentar outra coisa: que os luteranos não ensinam, nem crêem em tais coisas e, portanto, devem ser tratados de outra forma. Estamos consonantes e, de fato, não queimamos nenhum luterano. Mas com vosso famoso profeta teremos um outro tratamento. O que tu dirias se afirmasse e pudesse demonstrar que Lutero tenha ensinado sentenças, teses e máximas, não somente em colóquios, mas naqueles livros editados quando ainda era vivo, e que não são as mesmas professadas por Bruno, mas, nem por isso menos absurdas e mais espantosas? Não acreditas nisso? Reconheces, por favor, que ainda não conhecemos suficientemente bem aqueles que para vós colocou à luz a verdade sepultada por tantos séculos; e farei em modo que te sejam indicados aqueles passos nos quais tu possas fazer escorrer o sumo daquele, assim dito, quinto evangelho, se bem que tu tens à disposição a Anatomia de Lutero realizada por Pistorio. Ora, se Lutero é igual a Bruno, qual tratamento pensas que devemos dispensar àquele? Certamente deve ser confiado a Vulcano, o deus claudicante, para que seja queimado com lenha maldita. Que pena, então, acreditas deve ser inflingida àqueles que consideram como o Evangelista, como o Profeta e, em terceiro lugar, como Elias? Prefiro deixar a ti a tarefa de refletir sobre isso: somente desejo que tu me creias, que os romanos não implicam contra os hereges com aquela severidade que se crê e que, talvez, seria devida contra aqueles que conscientemente e voluntariamente se perdem.

Mas, basta dessas coisas. Aquilo que recentemente te pedi, por favor, em nome de nossa antiga amizade, de cuidá-lo de modo diligente: e do mesmo modo, se por tua conta posso fazer alguma coisa, a farei de modo que tu não tenhas de lamentar-te de minha lealdade e de meu empenho. Uma vez que já terás recebido a Vita di Sulpicio, desejo saber quando darás início à edição, e amigavelmente te recomendo que faças de modo a obter mérito das pessoas doutas e não de jovens ou de pessoas de pouca erudição. Esta má fama é de há muito conhecida. Agora é necessário agradecer somente aos letrados das nações mais importantes, coisa que acontecerá se não exibir todas aquelas coisas que podem ser ditas nas Scoli [sic], mas, sobretudo aquelas que gostarias que te fossem propostas por um outro homem ilustre. Além do mais, faze de modo que não emerja nenhuma afetação de muita leitura ou de erudição, como quando em uma nota ao Gunthero escreves que o caos é dito pelo povo hebraico, pontualização que os outros acreditam que sejam tuas e feitas de propósito, para não parecer ignorante da cultura hebraica.

 

Em terceiro lugar, não produzas nada contra os católicos, sobretudo não o faças por conveniência, não porque eu acredite que existam motivos pelos quais os católicos possam temer-te (aqueles, por sinal, estarão aqui quando não existires mais), mas porque não gostarias que impedissem aos teus livros e a ti mesmo acesso à Itália, à Espanha e, talvez, dentro em breve, à própria França. Se, de fato, o Concílio Tridentino fosse acolhido na França, como evidenciado nas recentes promessas do rei cristianíssimo ao pontífice, e que precisamente estaria ocorrendo nesse sentido, para os teus livros seria belo e estaria tudo terminado. E quando, enfim, caro Rittershausen, começarás seriamente a ser prudente, a ponto de entender com quantos períodos de alma e de corpo tu vivas entre os Inovadores? Coragem, rende-te caríssimo, rende-te, te digo, aos assim eminentes doutores e convenha que estes entenderam os Livros Sacros mais precisamente. O nosso Casaubono, como pude constatar, começa a oferecer-te um bom exemplo, escrevendo recentemente sobre esses argumentos uma carta muito sob medida ao Cardeal Baronio. Que Deus nos ilumine ainda mais e te renda um seguidor.

Em relação aos teus estudos, gostaria de saber sobre quais coisas estás te dedicando, ou o que estás apenas terminando ou o que estás fazendo: e ainda, se começaste a comentar as Pandette, depois que o teu Vesembecio, maltratado, distanciouse de ti. Quanto a mim, quase no final do último ano do século, consegui terminar o Commentatio delle indulgenze, para que fosse publicado na Alemanha. Agora terminei uma Spigolatura delle letture di Apuleio. Tão logo quanto possível, prepararei a edição de uma epístola de Dionísio de Alexandria. Depois, estou pensando em uma nova edição de Argellio, se bem contra a vontade de Fiannio, o qual, na verdade, começa a ser apreciado em aula, ao ponto de ser desprezado por aqueles que se dedicam aos seus mesmos estudos humanísticos; o que tu prevês para o futuro?

 

Tiveste como ver o Itinerario Italico de Francis Scot? Se não o viste, gostaria de ser eu a aconselhar-te a comprá-lo. Enviar-te-ei na primeira oportunidade os esboços da antiga e da nova Roma que poderão ser de grande valia para ti, para interpretar os escritores. O nosso amigo Wacker diz que te escreveu agradável e longamente, mas que não recebeu de ti sequer uma sílaba até o momento. Disso – conclui Wacker – suspeito fortemente que se tenha cansado de nós e não queiras mais entreter relações com homens idólatras: coisa que devemos tolerar. Quanto a mim, caro Rittershausen, não vejo por que uma amizade de um tão grande homem possa acabar-se. Por favor, te peço de não te alienares da cortesia que professamos, até o ponto que se possa mover contra de ti alguma acusação, a qual prefiro intuir, mais do que falar longamente. Mas as tuas cartas talvez não foram distribuídas: coisa que prefiro escolher como hipótese e, assim, posso desculpar-me contigo. Se tu me dás ouvido, não farei passar nenhuma semana sem escrever-te alguma coisa, especialmente sobre nossa literatura. Crê-me, sou um homem que muito te estima e que quer e pode ajudar-te, mesmo que não sejas católico. Aliás, o nosso Lipsio, onde se encontra? O que aconteceu com o seu Salustio, com seu livro De comitibus? Em que ponto está? Onde se encontram Guldinastus, Küchelius, Hubnerus e Ignazio? Peçote, por favor, se tiveres notícias deles, que me comuniques. Saudações à tua mulher e aos teus filhos, L. Quecio e Scelbio. De Roma, como de costume, rapidamente de minha residência, no dia 17 de fevereiro de 1600.

 

Do fundo de meu coração agora e para sempre, Gaspare Schopp.

Este site se dedica única e exclusivamente a promover e defender a Igreja Católica.  A Santa Madre Igreja do Nosso Senhor Jesus Cristo.  

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